domingo, maio 20, 2007

O António a dar corda à esperança

Vão fazer três anos que o meu pai morreru e ainda não cessou de mudar dentro de mim. Pensava que os mortos ficavam fixos em nós consoante ficam fixos no caixão e mentira: alteram-se conforme se altera a imagem que temos, desde a aparência ao temperamento, entendemo-los melhor, ficamos em paz com eles, sem ressentimento nem zanga, criaturas ao mesmo tempo verdadeiras e mitificadas cuja lembrança adquire uma prespectiva doce, envolta numa espécie de halo de ternura, isto depois de tantos julgamentos terríveis da nossa parte, tanta amargura tanta impiedade. A minha relação com o meu pai não foi fácil, o seu egoísmo e a sua fragilidade oculta indignavam-me.

E no entanto uma noite destas sonhei com ele: não tinha mais de trinta anos
(e eu com a idade de agora)
estava bonito
(tal como a nossa relação não foi fácil o meu pai não foi bonito)
com ar saudável, alegre, sentava-se à mesa de jantar e dizia
- Sabes, filho, nunca me senti tão bem. Palavra de honra que nunca me senti tão bem
isto radiante, simpático
(raras vezes o vi simpático)
quase de açucar: andei com o sonho na cabeça dias a fio, a pensar como será comigo em relação às pessoas que me estiveram próximas. Não sou especialmente simpático também, falo pouco, custa-me exprimir o amor que sinto, envergonho-me de, em certas alturas, me apetecer chorar. Claro que não choro: fico bravio, brusco, irónico, a liquefazer-me de afecto por dentro.
Ultimamente vivi a experiência mais violenta e radical da minha vida e continuo a morar com ela mesmo agora, em que o pesadelo parece estar a desvanecer-se.

Abandonei o livro que em que trabalhava há sete meses
(sete meses de doze horas por dia para o galheiro)
porque não posso, por um lado, escrever antes de voltar a ser eterno
(quando não estamos doentes somos eternos)
e por outro o meu mindo interior alterou-se de tal jeito que sou um homem diferente, e o homem que sou não pode continuar a prosa de um estranho. Fará prosa sua, necessariamente diversa. Uma parte minha segue às voltas com o imenso sofrimento pelo qual passei e me atormenta ainda a disponibilidade completa que um
(ia dizer romance mas não são romances o que faço)
exige e consolo-me pensando nos dezanove livros que até hoje escrevi e chegam bem para me justificar a existência. Acrescentar-lhe-ei alguns mais? Sempre estive certo que sim, hoje não sei.
(Agora de repente, perdoem a interrupção, veio-me à ideia, ignoro porquê, o sabor das peras verdes apanhadas da árvore em Nelas e enchi-me de saudades de eu pequeno diante da serra da Estrela, o único sítio onde fui sempre feliz, e lá está o meu avô, de casaco branco, na varanda da casa, todo fechado no seu silêncio de surdo)
Hoje não sei. Preciso de completar primeiro
(vestia-lhe o casaco branco às escondidas e as mangas chegavam ao chão)
o que doravante sou e faltam-me pedaços, como esses velhos Cristos de pau, sem membros, junto a escovas de cabo de prata no tampo das cómodas antigas. Crescer-me-à o braço esquerdo, os espinhos da coroa partidos, a ponta da barba? Houve ocasiões em que até o meu nome me parecia estranho aplicado a mim. A semana passada, ao ir tirar sangue para análises, a empregada chamou
- António Lobo Antunes
e como não era comigo nem me mexi
Repetiu
- António Lobo Antunes
nenhum António Lobo Antunes se apresentou e eu pensei
- Graças à falta desse vou ser atendido mais depressa.

Portanto preciso de completar primeiro o que sou e pode ser que, então, comece, mas não me preocupa muito o começar ou não começar. O que me preocupa então?
(Metia as mãos nos bolsos do casaco e achava dúzias de palitos.)
Sinseramente não sei. Curar-me? Garantem-me que estou curado. Precoupa-me o sofrimento nos olhos daqueles que esperam na sala de radioterapia. E a magreza, a cor da pele, a dor. Ambulâncias, algumas vindas de longe. Uma cigana a chegar de maca do Alentejo
(também fui feliz no Alentejo, não como na Beira Alta mas feliz mesmo assim)
um senhor de bengala, amparado à filha, com um embelema na lapela. Tento descobrir de que embelema se trata e não consigo, nem arranjo coragem para perguntar. O senhor caminha em passos difíceis e a filha de quarenta ou cinquenta anos, tão atenta, tão cautelosa. O facto de haver pessoas boas no mundo surpreende-me e exalta-me, em parte pelo facto de a maldade me repugnar. Se a empregada das análises tornar a chamar
- António Lobo Antunes
será comigo? Fico nesta dúvida um bocado e depois esqueço-me porque deixou de chover e um sol inesperado na janela a lembrar o sol nas pedras antiquíssimas de Monsaraz e no Guadiana lá em baixo. A ribeira, que é como falavam nela. A ribeira e um ou dois pescadores em banquinhos. Como contei no Auto dos Danados ao interessarem-se pelo que um deles pescava a resposta foi
- Principalmente nada.
A ribeira e o moinho da maré cheio de reflexos. Lagartinxas na erva. Borboletas. Que palavra linda, borboleta. Ó pai o que eu gostava de dizer
- Nunca me senti tão bem. Palavra de honra que nunca me senti tão bem
e estar à mesa consigo, sobretudo agora que é novo, o vejo contente e não vai morrer nunca mais. Não tenho espaço para nenhuma sepultura cá dentro e há-de chegar o momento em que o casaco branco do avô me serve. Então mando todas as doenças embora, elas obedecem que remédio, e seremos eternos. Quer apostar?

António Lobo Antunes
in
Visão nº 740 - 10 de Maio de 2007