domingo, julho 16, 2017



"Uma Rapariga é uma Coisa Inacabada" de Eimear McBride


Este é um livro diferente de tudo o que li. Esta é talvez a sua característica mais distintiva e se, ao início, se começa por estranhar as frases incompletas e as pausas constantes, o lirismo poética da prosa facilmente nos prende e arrasta nestes relatos de consciência/pensamento em permanente conflito.

Eu diria até que a intensidade e exuberância de sentimentos que este livro nos provoca é, não apenas pelos acontecimentos ominosos que são descritos, mas também pela forma como são descritos. E aqui a linguagem assume um papel diferenciador. Nunca um livro me fez “sofrer” tanto. E escrevo “sofrer” entre aspas, porque sendo um sentimento negativo, só a arte mais pura e bela é capaz de nos atingir com este ímpeto.

As personagens desta história não têm nome, mas são providos de uma densidade psicológica que as torna tangíveis. A história é narrada por uma rapariga e acompanha o seu crescimento, desde a infância, onde é criada por uma mãe com uma profunda crença religiosa, e vive com um irmão operado a um tumor cerebral, que lhe deixa algumas sequelas. Existe um sentido de protecção da narradora para com o irmão sacrificando, de certa forma, uma perda da sua identidade. Ainda assim, a relação dela com o irmão parece ser a única forma de amor puro que resiste nesta obra. A figura paternal está ausente do núcleo familiar.
A protagonista cresce, num ambiente repressivo, marcado por uma devoção fanática, onde a agressão física e psicológica estão presentes.

Aos 13 anos é abusada sexualmente pelo tio, e este parece ser o ponto de disrupção, a queda no abismo, que a levam por caminhos sinuosos onde a culpa e a punição parecem surgir como a única salvação possível.

A narradora, encarcerada no seu sofrimento, entra numa espiral de abusos, a maioria procurados por ela, e entrega o seu corpo, servindo-se do sangue, da pele rasgada, da dor física como forma de atenuar a sua angústia.

“Dói? Sim. Muito. Muito e traz-me um instante de alívio.”

Como se a dor a que voluntariamente se entrega e lhe é infligida pudesse de alguma forma libertar a sua alma lúgubre, resgatá-la da solidão e do vazio.

“Põe-te em cima de mim então. Em mim. Tira tudo o resto. Não me interessa e. Atira-me. Esmaga tudo. Faz o que bem entenderes. A resposta a todas as perguntas é Fode. Coses os meus olhos costuras os meus lábios. Fazes isso? (..) Ajuda-me. Salva-me. E ele beija-me toda como se estivesse viva. (…) Toda a carne imunda e firmemente coberta. Impregnada oprimida pela vida pela. Encaixada onde não há necessidade de se respirar de se pensar. (…) Ele. Magoa. Algures atrás do meu peito cerrado dos meus dentes cerrados dos meus pulmões cerrados do meu cérebro cerrado esmaga o meu sangue sabe aonde ir o meu coração trava quando pode deixá-lo fluir ao largo. Tê-lo. Fazê-lo. Eu dou-lhe. Um espaço tão vasto de preencher. Um espaço tão amplo branco e vazio. Eu sou. Que confusão de sangue e vergonha. (…) Eu digo Não me deixes sozinha. Há qualquer coisa a acontecer na minha. Por favor não pares digo e outra vez. Até à dor ou à náusea. Continua até que eu. Depois podes deixar-me morrer.”

Mas os seus comportamentos, que desafiam a racionalidade, só a levam a escavar cada vez mais o buraco de sofrimento em que se encontra, tornando-o de tal forma profundo, que torna a sua saída impossível. O sentimento de apaziguamento interior parece ser intangível, os ritos de auto-punição e esvaziamento dos sentidos pela dor são infrutíferos.

A água surge, então, como forma de redenção, a água que purifica, que limpa. A saída para a libertação, capaz de a levar à única forma de amor que conheceu.

“Segura-me irmão. É mais limpo aqui. Mostra-me todos os lugares de uma alma. Onde me acalmar. E acalma-me.”

Este livro faz o que só a grande literatura tem a capacidade de fazer, coloca questões, faz-nos reflectir sobre os comportamentos humanos. Lê-lo é uma experiência perturbante e inquietante, o fluxo de consciência da narradora, a sua dor, os seus medos, o seu rumo ao precipício passa a ser o nosso e desejamos libertá-la, para nos podermos libertar a nós. Este não foi um livro fácil pelos sentimentos que me provocou, porém deixou-me num estado de plena exaltação, numa dicotomia entre a vontade de o reler, mas a sensação de que preciso de mais algum tempo para o voltar a fazer.

Citando Rodrigo Guedes de Carvalho, no seu último livro "O Pianista de Hotel", “a arte é a única coisa que sendo triste pode ser bela”. Eu acrescento que em "Uma Rapariga é Uma Coisa Inacabada" a tristeza é proporcional à beleza e, por isso, este é dos livros mais tristes e belos que já li.

Leiam, por favor, leiam! Deixo apenas uma advertência, depois de lerem este livro, o leitor que habita em nós vai torna-se um ser muito mais exigente e insatisfeito.

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